Remédio anestésico pode virar tratamento contra a depressão resistente
O fármaco teria ação antidepressiva potente até em casos que não respondem ao tratamento normal. E seria o primeiro psicodélico contra doenças psiquiátricas.
Em setembro de 2018, a farmacêutica Janssen apresentou à agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) um pedido de registro de uso novo para uma medicação antiga. O laboratório solicitou que o anestésico cetamina, sintetizado nos anos 1960, possa ser empregado contra a depressão que não cede aos antidepressivos, chamada de refratária ao tratamento (ou depressão resistente).
Nos últimos 20 anos, um número crescente de estudos sugere que, em doses baixas, a cetamina tem ação antidepressiva potente e rápida. No entanto, de fato a maior parte desses experimentos foi conduzida com poucas pessoas e por um período curto.
De qualquer jeito, uma única aplicação de cetaminada, injetada no músculo ou na corrente sanguínea, seria capaz de reduzir de modo significativo e relativamente duradouro (cerca de uma semana) a tristeza, a desesperança, a falta de motivação, a baixa autoestima e até os pensamentos suicidas que às vezes acompanham a depressão severa.
“Em doses de dez a 20 vezes inferiores às usadas na anestesia, a cetamina é um medicamento que ajuda a tirar a pessoa do fundo do poço”, afirma o psiquiatra Acioly Lacerda, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos pioneiros no uso experimental da droga contra a depressão no Brasil.
De olho nesse mercado, a Janssen desenvolveu uma versão da cetamina de aplicação mais simples para indivíduos com depressão. Trata-se de um spray nasal que deverá ser administrado sob supervisão médica.
Caso seja aprovada pela FDA, a cetamina inalável deve se tornar o primeiro composto da classe dos psicodélicos, que alteram a percepção da realidade, a ser adotado no tratamento de doenças psiquiátricas com respaldo de uma autoridade sanitária. Recentemente, tem crescido o interesse de profissionais de saúde mental no uso terapêutico de psicodélicos, muitos em estágio inicial de testes.
Em maio, o grupo coordenado pela psiquiatra Carla Canuso, diretora de desenvolvimento clínico da Johnson & Johnson – empresa que comanda a Janssen –, publicou um artigo online no American Journal of Psychiatry em que mostra os resultados de uma etapa anterior, os ensaios de fase 2.
Realizado com pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, o estudo avaliou a segurança e deu indícios da possível eficácia do spray. Nele, 68 voluntários com depressão refratária e risco iminente de suicídio foram aleatoriamente indicados para receber duas doses semanais de cetamina intranasal por quatro semanas ou de um composto inócuo (placebo). Os dois grupos também foram tratados com um antidepressivo convencional. Segundo o trabalho, quem recebeu cetamina melhorou mais rápido, até o 11º dia dos testes.
Resultados preliminares de dois ensaios clínicos de fase 3, dos quais participam centenas de pessoas em 60 clínicas e hospitais de diversos países, inclusive do Brasil, foram apresentados em maio no encontro anual da Associação Americana de Psiquiatria e reforçam os achados anteriores.
“Se a resposta da cetamina intranasal continuar superior à do placebo nos estudos que estão terminando, a aprovação da FDA pode vir em até um ano”, diz o psiquiatra Lucas Quarantini, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, como Lacerda, participa dos testes do medicamento da Janssen.
A cetamina já vem sendo usada contra a depressão
Mesmo sem aprovação das autoridades de saúde, já ocorre nos Estados Unidos, e mais recentemente no Reino Unido e no Brasil, a prescrição de cetamina injetável contra a depressão refratária. Nesses países, o composto está registrado apenas como anestésico.
Seu uso psiquiátrico não consta da bula e é considerado excepcional (ou off-label). Por essa razão, a indicação da cetamina injetável contra a depressão ocorre por conta e risco do médico, que só deve recomendá-la se os benefícios para o paciente superarem os riscos.
Entre possíveis reações adversas há o risco de dependência e uma elevação temporária da pressão arterial. “O uso off-label é de responsabilidade de cada profissional”, informou a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula a venda de medicações no Brasil.
No país, a única empresa produtora de cetamina, o laboratório Cristália, entrou há cerca de oito meses com um pedido na Anvisa para que o tratamento da depressão passe a constar em bula. “Reunimos os estudos mostrando a segurança e eficácia do produto contra a depressão e estamos aguardando”, conta o médico Ogari Pacheco, cofundador do Cristália. Isso, claro, vale para a versão injetável – e não a em spray, da Janssen.
A aprovação pela autoridade sanitária daria respaldo aos médicos, que correm o risco de sofrer ações judiciais. Também representaria um passo inicial para que se torne possível pedir ao Ministério da Saúde a inclusão da cetamina, um remédio barato (a dose custa entre R$ 5 e R$ 10), na lista de medicamentos e procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelos planos de saúde.